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Este ano comecei a ler o livro Not Exactly: In Praise of Vagueness. O objetivo do livro é mostrar como a imprecisão é inerente às nossas tentativas de entender o mundo e como a filosofia, a linguística e a ciência da computação tentam lidar com essa questão.

Um caso simples que ilustra esse problema: como classificar a fala das pessoas em idiomas? Por que, por exemplo, o português e o espanhol são considerados idiomas diferentes, ainda que tenham muito léxico, sintaxe e história em comum? O que faz com que o português falado em Lisboa e o português falado em Natal sejam considerados o mesmo idioma, ainda que existam várias diferenças em léxico, sintaxe e fonética? Em que momento as diferenças deixam de meramente definir dialetos diferentes e passam a definir novos idiomas? Ou seja, como classificamos os dialetos em categorias maiores, idiomas, de uma forma que faça algum sentido?

Partições e relações de equivalência

Esse tipo de classificação, no jargão matemático, se chama de partição. Imagine que temos um conjunto $A$. Uma partição $P$ do conjunto $A$ seria uma coleção de subconjuntos de $A$ satisfazendo dois critérios:

  • Todo elemento de $A$ está em algum conjunto de $P$.
  • Um elemento de $A$ não pode estar em dois conjuntos diferentes de $P$ ao mesmo tempo.

Se voltarmos ao problema de dividir dialetos em idiomas, isso equivale a a impôr as seguintes restrições à nossa tarefa:

  • Todo dialeto pertence a algum idioma.
  • Um dialeto não pode pertencer a dois idiomas ao mesmo tempo.

Razoável, não? Pois bem, continuemos. Quando a partição está feita, podemos pensar que os elementos de um mesmo conjunto de $P$ têm algo em comum, são, em algum sentido, equivalentes. Matematicamente, uma partição induz uma relação de equivalência, uma relação $\equiv$ que satisfaz as seguintes propriedades:

  • É reflexiva: $A \equiv A$, todo $A$ está relacionado a si mesmo.
  • É simétrica: Para quaisquer $A$ e $B$, quando $A \equiv B$, $B \equiv A$ também. Isto é, quando A está relacionado a B, B está relacionado a A.
  • É transitiva: Quando $A \equiv B$ e $B \equiv C$, $A \equiv C$ também. Ou seja, quando A está ligado a B e B está ligado a C, A está ligado a C também.

Uma relação de equivalência é, em essência, uma relação que tem uma estrutura parecida com a relação familiar de igualdade. Podemos verificar que a relação “pertencer a um mesmo conjunto na partição” define uma relação de equivalência:

  • É reflexiva, pois todo elemento de $A$ está no mesmo conjunto de $P$ que o próprio $A$, por óbvio.
  • É simétrica. Dizer que $A$ e $B$ ou que $B$ e $A$ estão num mesmo conjunto dá no mesmo.
  • É transitiva. Quando $A$ e $B$ estão no mesmo conjunto, $B$ e $C$ estão no mesmo conjunto, $A$ e $C$ estão no mesmo conjunto também, pois do contrário $B$ teria que estar em dois conjuntos diferentes de $P$, um absurdo.

A verdade é que partições e relações de equivalência são, essencialmente, dois modos diferentes de enxergar a mesma coisa. Assim como toda partição induz uma relação de equivalência, toda relação de equivalência induz uma partição. Essa partição é feita de modo intuitivo: colocamos dois elementos num mesmo conjunto quando eles são equivalentes (segundo a relação de equivalência que estabelecemos). Cada conjunto desses é denominado uma classe de equivalência, e a partição é a coleção formada por todas essas classes de equivalência.

Para exemplificar: peguemos o conjunto $A = \{0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9\}$. Uma relação de equivalência que podemos definir sobre ele é a seguinte: chamaremos dois elementos desse conjunto de equivalentes quando o resto da divisão deles por 2 for o mesmo. Essa relação induz uma partição: podemos formar a classe de equivalência de todos os elementos cujo resto da divisão por 2 é 0, $\{0, 2, 4, 6, 8\}$ e a classe de equivalência dos elementos que deixam resto 1, $\{1, 3, 5, 7, 9\}$. Ou seja, a relação de equivalência que defini particionou o conjunto em dois, os pares e os ímpares.

A matemática nos permite concluir o seguinte: para construir partições, podemos pensar em critérios, relações de equivalência. Mas para isso, é necessário que esse critério satisfaça reflexividade, simetria e, em especial, transitividade.

Inteligibilidade mútua

Bem, temos que pensar em um critério para distinguir entre dialetos e idiomas. O mais simples que se pode pensar é o da inteligibilidade mútua: dois dialetos fazem parte de um mesmo idioma se os falantes de um, sem treinamento ou exposição prévia, conseguem se comunicar sem muitos problemas com os do outro, e vice-versa. Razoável, se pensarmos que o papel fundamental da linguagem é de mediar a comunicação.

Segundo a teoria matemática construída, esse critério só vai funcionar se for transitivo, o que infelizmente não é o caso. Um exemplo onde a inteligibilidade mútua falha em ser transitiva é o caso de contínuo de dialetos. Tipicamente os dialetos tendem a ir se diferenciando conforme a distância geográfica. Um dialeto A é parecido com um dialeto B falado a 100km, que é parecido com dialeto C a 100km de B, e assim vai. Essas diferenças vão se acumulando de tal forma que uma hora chegaremos em um dialeto Z que já não conversa mais com o dialeto A.

A península ibérica fornece um exemplo: O português do sul entende o português do norte, o português do norte entende o galego, já na Espanha, o galego entende o falante de leonês, que entende o falante de castelhano. Mas o português não é mutuamente inteligível com o castelhano! Se galego é um dialeto de português ou um idioma a parte é uma questão que ainda gera debates, e qualquer resposta a favor de um lado ou de outro será arbitrária.

Podemos modificar nosso critério para tentar resolver o problema da transitividade. Dizemos que dois dialetos são de um mesmo idioma quando são mutuamente inteligíveis ou quando, ao menos, existe uma variadade padronizada, uma versão lingua franca dele que os falantes de ambos dialetos entendem e podem usar para se comunicar. É o que acontece com o árabe, o mandarim e o alemão, por exemplo. Isso implica, no entanto, aceitar que o cantonês e o chinês de Shanghai são o mesmo idioma, embora uma conversa entre falantes das duas variedades seja inviável.

Poderíamos levar isso mais adiante: poderíamos dizer que dois dialetos A e B são de um mesmo idioma se existe uma sequência de dialetos A, C, D, E, …, B onde cada dialeto é mutuamente inteligível com o próximo. Matematicamente, a solução é perfeita. Mas a consequência é que com esse critério teríamos apenas um punhado de idiomas no mundo: o indo-europeu, o semita, o austronésio e etc. E de que adiantaria um critério tão amplo como esse? Nada. Não tem jeito: sem transitivade, qualquer critério vai pecar por falta ou excesso.